
Introdução: Para Além da Jornada Póstuma – Desfazendo a Acusação de Plágio
A acusação de plágio, quando levantada contra uma obra de arte, representa um dos mais sérios desafios à integridade de seu criador. Recentemente, a websérie “A Morte não é o fim”, do Prof. Rodrigo Carvalho, tem sido alvo de comparações com o monumental poema épico de Dante Alighieri, “A Divina Comédia”, com alguns críticos e espectadores a apontarem semelhanças que, na sua visão, transcendem a mera inspiração e entram no território da imitação. Tais alegações baseiam-se numa premissa superficialmente partilhada: a jornada de um protagonista através dos reinos do pós-vida. Contudo, é precisamente neste ponto de partida comum que as semelhanças terminam e as profundas, irreconciliáveis divergências começam.
Este artigo propõe-se a realizar uma análise comparativa rigorosa entre as duas obras, com o objetivo de demonstrar que “A Morte não é o fim” não é uma releitura moderna, nem uma adaptação, mas sim uma completa desconstrução do modelo dantesco. Argumenta-se que a websérie substitui o dogma católico medieval, que serve de alicerce para a obra de Dante, por uma filosofia moderna, psicológica e fundamentada em preceitos espíritas, criando uma obra com identidade, propósito e cosmologia radicalmente distintos. Enquanto Dante mapeia uma realidade teológica externa e universal 1, Carvalho explora uma paisagem interior, subjetiva e construída pela consciência do indivíduo.2
Portanto, longe de ser um plágio, “A Morte não é o fim” estabelece um diálogo intertextual com o seu predecessor clássico, utilizando um arquétipo cultural milenar — a jornada ao submundo — como um ponto de partida para explorar questões existenciais sob uma ótica contemporânea. Ao longo desta análise, serão desvendadas as diferenças fundamentais na arquitetura do além, na caracterização dos protagonistas e seus guias, na natureza da justiça e da punição, e na própria forma narrativa, provando que a websérie de Carvalho é uma criação artística autônoma e original.
I. A Arquitetura do Além: O Cosmos Teológico de Dante vs. A Psicosfera de Carvalho
A divergência mais fundamental entre “A Divina Comédia” e “A Morte não é o fim” reside na própria concepção da realidade pós-morte. Enquanto Dante apresenta um universo físico, externo e imutável, regido por leis divinas absolutas, Carvalho propõe uma realidade fluida, interna e inteiramente dependente da psique do indivíduo. A comparação das suas arquiteturas do além revela não apenas dois cenários distintos, mas duas visões de mundo diametralmente opostas.
A. O Universo Fixo e Hierárquico de Dante
A cosmologia de Dante Alighieri é um produto magistral do seu tempo, uma síntese da teologia católica medieval, particularmente a filosofia tomista, e da ciência ptolomaica.4 O seu pós-vida não é uma metáfora, mas um lugar físico, com uma geografia e uma estrutura precisas. Esta realidade é externa à alma que a percorre e universalmente aplicável a todos, criada por um decreto divino. A estrutura é marcada por uma rigidez matemática e simbólica, dividida em três grandes reinos: Inferno, Purgatório e Paraíso.1
O Inferno é um vasto funil subterrâneo, uma cavidade na Terra que se aprofunda em nove círculos concêntricos.6 Cada círculo corresponde a uma categoria de pecado, com a gravidade aumentando à medida que se desce.6 No Limbo, habitam os virtuosos pagãos; nos círculos seguintes, os luxuriosos, os gulosos, os avarentos, os iracundos, os hereges, os violentos, os fraudulentos e, no centro gelado da Terra, os traidores, onde Lúcifer reside.1 As punições são literais e seguem o princípio do
contrapasso, onde o castigo reflete a natureza do pecado. Por exemplo, os luxuriosos, que se deixaram levar pelas paixões, são eternamente açoitados por ventos incessantes.1 Esta é a manifestação da justiça divina, retributiva e eterna.
O Purgatório é uma montanha altíssima numa ilha no hemisfério sul, o único lugar onde a purificação é possível. É dividido em sete terraços, cada um dedicado à expiação de um dos sete pecados capitais: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria.6 Ao contrário do Inferno, o Purgatório é um reino de esperança e transitoriedade, onde as almas sofrem para se purificarem antes de poderem ascender ao Paraíso.1 Finalmente, o Paraíso é composto por nove esferas celestes concêntricas, correspondentes aos corpos celestes do modelo ptolomaico (Lua, Mercúrio, Vénus, etc.), culminando no Empíreo, a morada de Deus.6 A arquitetura de Dante é, portanto, uma manifestação de uma ordem divina, hierárquica e imutável, um mapa cósmico da moralidade cristã.
B. O Pós-Vida Fluido e Psicológico de Carvalho
Em “A Morte não é o fim”, a arquitetura do além é radicalmente diferente. A websérie abandona a ideia de uma geografia universal do pós-morte e, em seu lugar, apresenta o que pode ser descrito como uma “psicosfera” — um reino construído inteiramente a partir da consciência, memórias e estado espiritual de cada indivíduo. Não é um local para onde a alma vai, mas um estado de ser que a alma manifesta.
A sinopse da série deixa claro este conceito. O “Inferno” é explicitamente definido não como um lugar de fogo e enxofre, mas como um “purgatório pessoal”, onde o indivíduo é forçado a confrontar “as piores experiências vividas em vida, intensificadas” e os seus “maiores arrependimentos”.2 A punição não é externa ou física, mas interna e “na alma”.3 Da mesma forma, o “Paraíso” não é uma esfera celestial, mas um “refúgio de paz e felicidade, composto pelas melhores lembranças e momentos marcantes da vida do personagem”.2 A terceira realidade, o “Mundo dos Vivos”, permite ao espírito revisitar memórias e observar o impacto da sua vida naqueles que deixou para trás.2
Este modelo é, por natureza, fluido, subjetivo e intransferível. O “inferno” de uma alma é único para ela, moldado pelos seus traumas e erros específicos, em contraste direto com os círculos de Dante, que agrupam classes inteiras de pecadores sob a mesma punição. A realidade pós-morte de Carvalho reflete uma compreensão moderna da consciência, da memória e do trauma, alinhada com a filosofia espírita, que vê o pós-vida como uma continuação da jornada de aprendizado da alma, onde os “céus” e “infernos” são, antes de mais, estados de consciência.
C. O Confronto de Mundividências
A análise comparativa das duas arquiteturas revela uma divergência que não é meramente estrutural, mas epistemológica. O universo de Dante é fundamentalmente teocêntrico: Deus é o centro, a fonte de toda a realidade, e a justiça divina é uma verdade externa, objetiva e absoluta que o peregrino deve descobrir e aceitar. A jornada de Dante é uma peregrinação através de uma criação divina que existe independentemente dele.
Em contrapartida, o universo de Carvalho é psicocêntrico: a consciência do indivíduo é o centro e a criadora da sua própria realidade pós-morte. A realidade não é uma verdade externa a ser descoberta, mas um estado interno a ser confrontado e compreendido. Esta mudança reflete uma transição monumental no pensamento ocidental, de uma cosmovisão medieval, coletiva e baseada na fé, para uma perspetiva moderna, individualista e psicológica.
Deste modo, a acusação de plágio falha no seu ponto mais elementar, pois confunde a partilha de um tema (a vida após a morte) com a partilha de uma cosmologia. Carvalho não está a copiar o mapa de Dante; pelo contrário, a sua obra propõe que um mapa universal como o de Dante não existe. Em “A Morte não é o fim”, cada alma é o seu próprio cartógrafo, forçada a navegar pelo terreno que a sua própria vida e consciência criaram. Esta é uma diferença filosófica fundamental e irreconciliável que estabelece a originalidade da websérie.
II. O Peregrino e o Cético: Análise Comparativa dos Protagonistas e Seus Guias
As jornadas narrativas em “A Divina Comédia” e “A Morte não é o fim” são definidas não apenas pelos mundos que os seus protagonistas atravessam, mas também por quem são esses protagonistas e pela natureza dos guias que os acompanham. Uma análise aprofundada revela que as suas trajetórias são diametralmente opostas, partindo de estados de crença antagónicos e sendo conduzidas por mentores com propósitos radicalmente distintos.
A. Dante, o Peregrino Crente e Seus Guias Didáticos
O protagonista de “A Divina Comédia” é o próprio Dante Alighieri, que se insere na narrativa como um homem de 35 anos que, a meio da sua vida, se encontra perdido numa “selva tenebrosa”, tendo perdido a “verdadeira estrada”.1 É crucial notar que Dante não é um incrédulo; ele é um crente que se desviou. A sua jornada não é uma busca pela fé, mas sim um percurso de reafirmação, educação e penitência para regressar ao caminho da salvação dentro de um sistema de crenças que ele já aceita como verdadeiro.
Os seus guias são figuras profundamente alegóricas, com funções didáticas claras. O primeiro, Virgílio, o poeta romano, representa o auge da Razão Humana.9 Enviado por Beatriz, ele guia Dante através do Inferno e do Purgatório, reinos cujas leis e castigos podem ser compreendidos pela lógica e pela virtude clássica.1 Virgílio é o mestre que explica a estrutura do pecado e da penitência. No entanto, a Razão, por si só, é insuficiente para alcançar o divino. Por isso, às portas do Paraíso, Virgílio despede-se, pois, como pagão, não pode entrar no reino da graça.1
É nesse momento que Beatriz assume o papel de guia. Ela, o amor idealizado de Dante, personifica a Fé, a Teologia e a Revelação Divina.9 É ela quem pode guiar Dante através das esferas celestiais, desvendando mistérios que transcendem a compreensão humana.1 A jornada de Dante é, portanto, uma ascensão estruturada e pedagógica: da Razão (Virgílio) para a Fé (Beatriz), culminando na visão de Deus. Os guias são professores que iluminam um caminho pré-definido em direção a uma verdade absoluta.
B. O Protagonista Cético e Seu Guia Enigmático
Em total contraste, o protagonista de “A Morte não é o fim” é apresentado como um “cético convicto”.3 Ele não é um crente desviado, mas um materialista cuja visão de mundo é completamente estilhaçada por uma morte inesperada que o lança numa realidade que ele nunca acreditou existir. A sua jornada não é sobre reafirmar a fé, mas sobre lidar com o colapso total das suas certezas e a perda da sua identidade.
O seu guia reflete esta premissa existencial. Não se trata de uma alegoria de uma virtude humana ou divina, mas sim do “enigmático anjo negro, personificação da própria morte”.3 Este guia não é um professor que explica as leis de um universo ordenado; ele é um facilitador misterioso cujos “motivos [guarda] em segredo”.3 A relação entre o protagonista e o seu guia não é de mestre e discípulo, mas de cativo e captor, ou de observador e mistério. Esta dinâmica transforma a jornada de uma peregrinação didática numa investigação existencial.
O protagonista é descrito como um “observador passivo de sua própria existência”, forçado a assistir ao seu próprio funeral e a revisitar as suas memórias.3 O seu aprendizado não vem de lições teológicas, mas da experiência direta e da empatia, como quando ajuda outras almas perdidas.3 Este processo sugere um caminho de crescimento através da introspeção e da alteridade, não da instrução dogmática.
C. A Trajetória da Salvação vs. A Crise da Realidade
A análise comparativa dos protagonistas e dos seus guias revela que as duas narrativas exploram dramas humanos fundamentalmente diferentes. “A Divina Comédia” é uma história de salvação. O objetivo de Dante é claro desde o início: escapar da “selva tenebrosa” e alcançar a graça de Deus no Paraíso.1 O caminho está traçado, e o drama reside na sua capacidade de suportar as provações e absorver as lições necessárias para completar a jornada. É uma narrativa sobre como uma alma, auxiliada pela Razão e pela Fé, pode regressar a um estado de harmonia com o divino.
Por outro lado, “A Morte não é o fim” é uma história de crise epistemológica. O protagonista de Carvalho não tem um objetivo inicial, porque a própria premissa da sua jornada viola tudo em que ele acreditava. A “razão por trás de sua complexa jornada permanece um mistério”.3 O drama não reside em alcançar um destino, mas em tentar compreender a natureza da sua nova e surreal realidade. É uma narrativa sobre como uma mente moderna, despojada da sua identidade e das suas certezas materialistas, é forçada a construir um novo paradigma para a existência.
Consequentemente, os arcos dos personagens são incomparáveis. O de Dante é uma progressão linear em direção a uma verdade divina conhecida e pré-existente. O do protagonista de Carvalho é uma exploração fragmentada e não-linear de uma realidade subjetiva e misteriosa. O primeiro procura encontrar o caminho; o segundo descobre que ele próprio é o caminho, um caminho moldado pelas suas próprias memórias, ações e arrependimentos. Esta distinção fundamental na jornada do herói invalida qualquer alegação de que uma seja uma cópia da outra.
III. A Natureza da Punição: Justiça Retributiva Divina vs. Redenção Cármica Pessoal
Um dos elementos mais marcantes de “A Divina Comédia” é a sua representação do Inferno e da justiça divina. Da mesma forma, o conceito de “inferno” em “A Morte não é o fim” é central para a sua narrativa. No entanto, uma análise mais atenta revela que os dois conceitos de “punição” e “justiça” não poderiam ser mais filosoficamente distintos. Dante apresenta um sistema de justiça retributiva e final, enquanto Carvalho explora um modelo de sofrimento redentor e processual.
A. O Inferno de Dante: Punição Eterna e Retributiva
O Inferno de Dante Alighieri é um reino de juízo final e irrevogável. A inscrição icónica sobre o seu portão — “VÓS, QUE ENTRAIS, ABANDONAI TODA A ESPERANÇA” 12 — encapsula perfeitamente a sua natureza. É um estado de condenação eterna, do qual não há escapatória nem possibilidade de redenção. As almas ali confinadas não estão a ser purificadas; estão a pagar uma dívida de pecado por toda a eternidade.
Este sistema representa a justiça retributiva de Deus. As punições são frequentemente físicas, grotescas e meticulosamente concebidas para se adequarem ao crime, numa lógica de contrapasso.1 Os gulosos chafurdam numa lama fétida sob uma chuva gelada, atormentados por Cérbero, refletindo a sua entrega descontrolada aos apetites terrenos. Os suicidas, que rejeitaram os seus corpos, são transformados em árvores nodosas, perpetuamente feridas pelas Harpias.1 A justiça aqui é uma balança que foi equilibrada: um ato de pecado em vida é pago com uma eternidade de sofrimento correspondente. O Inferno de Dante é, portanto, um sistema de justiça estático, um veredito final que encerra a história da alma condenada.
B. O “Inferno” de Carvalho: Sofrimento Temporário e Redentor
A websérie “A Morte não é o fim” redefine radicalmente o conceito de “inferno”. Longe de ser um local de punição eterna, é apresentado como um processo terapêutico, embora extremamente doloroso. É um estado temporário onde a alma é forçada a confrontar as suas próprias transgressões, não para ser castigada eternamente, mas para aprender e evoluir. A própria sinopse descreve este reino como um “aprendizado crucial” que serve para “incentivar o crescimento espiritual”.2
O sofrimento é predominantemente psicológico, consistindo no reviver dos “maiores arrependimentos” e das “piores experiências”.2 A punição não é imposta por uma força externa, mas gerada pela própria consciência do indivíduo. Este modelo alinha-se diretamente com a doutrina espírita do karma e da lei de causa e efeito, onde o sofrimento não é um castigo, mas um mecanismo de purificação e reajuste espiritual. O objetivo não é a retribuição, mas a redenção.
A natureza redentora deste “inferno” é ainda mais evidenciada pelo arco do protagonista, que encontra um “novo propósito” ao ajudar outras almas em sofrimento, transformando a sua própria provação numa oportunidade de serviço e crescimento.3 O inferno de Carvalho é descrito como um “catalisador para a transformação”, um lugar onde os personagens podem “confrontar seus medos e encontrar a redenção”.3 É, portanto, um sistema de justiça dinâmico, focado na reabilitação da alma.
C. O Fim da Justiça vs. A Justiça Sem Fim
Estas duas conceções de “inferno” revelam teorias de justiça opostas. O modelo de Dante é o da justiça terminal. Reflete a escatologia cristã de uma vida única seguida por um juízo final que determina um destino eterno e imutável.13 A jornada da alma tem um fim, um ponto de chegada definitivo, seja a condenação, a purificação ou a glória. A justiça é o ato que encerra o processo.
O modelo de Carvalho, por outro lado, é o da justiça processual. Enraizado numa filosofia que acredita na continuidade da vida e na evolução espiritual, o seu sistema é cíclico. A narrativa sugere a possibilidade de reencarnação (“A cada nova vida, os erros cometidos se acumulam”) e descreve a jornada da alma como “uma jornada sem fim”.3 Neste paradigma, o sofrimento não é o fim da história da alma, mas um capítulo necessário no seu percurso contínuo de aprendizado. A justiça não é um veredito final, mas o próprio processo de causa e efeito que impulsiona a alma para a frente.
Portanto, o próprio significado de “punição” é transformado. Para Dante, é o fim da linha. Para Carvalho, é uma curva de aprendizagem. Este abismo filosófico entre um modelo de justiça finalista e um modelo de justiça evolutiva torna a acusação de plágio, baseada na mera presença de um “inferno” em ambas as obras, fundamentalmente insustentável. As duas obras utilizam a mesma palavra para descrever conceitos que são, na sua essência, antagónicos.
IV. A Forma e a Função: Poema Épico Fechado vs. Websérie Episódica Aberta
A análise das divergências entre “A Divina Comédia” e “A Morte não é o fim” estaria incompleta sem considerar a forma como o meio e a estrutura narrativa de cada obra são expressões diretas das suas filosofias centrais. A escolha de Dante por um poema épico fechado e a de Carvalho por uma websérie episódica aberta não são detalhes incidentais; são decisões artísticas que corporizam as suas respetivas visões do mundo, tornando as obras formalmente, e não apenas tematicamente, distintas.
A. “A Divina Comédia”: Estrutura Finita para uma Jornada Finita
Dante Alighieri escolheu a forma de um poema épico, um género tradicionalmente associado a mitos fundacionais, narrativas grandiosas e jornadas que chegam a uma conclusão definitiva. A sua estrutura é um testemunho da crença numa ordem divina, simétrica e, em última análise, cognoscível. A obra está meticulosamente organizada em 100 cantos, um número que simboliza a perfeição, divididos numa introdução (Canto I do Inferno) e três partes de 33 cantos cada, um número com profunda ressonância cristã.6
A própria métrica poética, a terza rima, com o seu esquema de rimas encadeadas (ABA BCB CDC…), cria uma sensação de progressão contínua e interligada, impulsionando o leitor para a frente, tal como Dante é impulsionado na sua jornada.1 A narrativa tem um início claro (a selva escura), um desenvolvimento complexo (a travessia dos três reinos) e um final conclusivo (a visão beatífica de Deus). Esta estrutura fechada e finita espelha perfeitamente o sistema teológico que descreve: uma jornada com um propósito teleológico claro, que culmina na salvação final e no fim da peregrinação da alma. A forma do poema é um microcosmo da ordem cósmica que ele representa.
B. “A Morte não é o fim”: Estrutura Aberta para uma Jornada Infinita
Rodrigo Carvalho, por sua vez, utiliza o formato contemporâneo de uma websérie, um meio inerentemente episódico e, crucialmente, com potencial para ser contínuo. A própria descrição da obra sublinha esta característica, afirmando que a história “pode continuar se desenrolando em capítulos infinitos”.3 Esta estrutura narrativa aberta e potencialmente interminável é o veículo perfeito para a sua temática espírita, que postula a jornada da alma como um processo contínuo e sem fim de evolução através de múltiplas experiências.
O formato serializado permite uma exploração aprofundada e fragmentada das memórias e encontros do protagonista, refletindo a natureza não-linear da consciência e do crescimento espiritual. Cada episódio pode funcionar como um fragmento de memória, um encontro com outra alma ou uma lição específica, sem a necessidade de se encaixar numa progressão linear em direção a um único clímax final. A estrutura aberta da websérie corporiza a ideia de que a morte não é, de facto, o fim, mas apenas uma transição numa série contínua de estados de ser.
C. A Forma como Expressão da Filosofia
A comparação das estruturas narrativas revela que, em ambas as obras, a forma é a mensagem. Uma forma narrativa fechada, como a do poema épico, implica uma visão de mundo teleológica — uma visão onde os eventos se movem em direção a um propósito ou fim pré-determinado. Isto adequa-se perfeitamente ao objetivo de Dante de retratar a jornada da alma até ao seu destino final em Deus, o fim de toda a busca. A estrutura completa e autossuficiente do poema argumenta a favor de uma verdade final e alcançável.
Por outro lado, uma forma narrativa aberta, como a de uma websérie potencialmente infinita, implica uma visão de mundo processual — uma visão onde a própria jornada, o processo de vir a ser, é o ponto central, sem um único destino final. Isto corresponde de forma ideal ao conceito espírita de evolução eterna através de sucessivas experiências e aprendizados. A estrutura episódica e contínua da série argumenta a favor de uma verdade que está sempre a desdobrar-se, de um crescimento que nunca cessa.
Consequentemente, acusar a websérie de plagiar o poema é ignorar como as suas estruturas fundamentais estão em oposição direta, cada uma escolhida especificamente para incorporar as suas reivindicações filosóficas contraditórias. A forma finita de Dante celebra a chegada; a forma infinita de Carvalho celebra o caminho.
Conclusão: O Eco e a Voz – Distinguindo a Herança Cultural da Cópia Artística
A análise detalhada das duas obras revela que, embora partam de um arquétipo comum, “A Morte não é o fim” e “A Divina Comédia” seguem trajetórias que divergem em todos os aspetos fundamentais. As acusações de plágio, ao focarem-se na superfície temática, ignoram as profundas diferenças filosóficas, estruturais e narrativas que definem cada obra como uma criação única e distinta.
A síntese dos argumentos apresentados demonstra um contraste inequívoco. Primeiro, na cosmologia: o universo de Dante é externo, teológico e universal, enquanto o de Carvalho é interno, psicológico e pessoal. Segundo, nos protagonistas: Dante é um crente numa jornada de salvação guiado pela Razão e pela Fé, enquanto o protagonista de Carvalho é um cético numa crise existencial, guiado pela enigmática Morte. Terceiro, na justiça: o Inferno de Dante é um lugar de punição eterna e retributiva, enquanto o “inferno” de Carvalho é um estado de sofrimento temporário e redentor. Quarto, na forma: o poema épico de Dante possui uma estrutura fechada que reflete uma jornada finita, enquanto a websérie de Carvalho tem uma estrutura aberta que espelha uma evolução infinita.
É crucial distinguir entre a utilização de um arquétipo cultural e o ato de plágio. A katabasis, a jornada ao submundo, é um dos temas mais antigos e persistentes da literatura mundial, presente muito antes de Dante, desde a Epopeia de Gilgamesh até à Odisseia de Homero e à Eneida de Virgílio. Cada artista que aborda este arquétipo fá-lo para explorar as preocupações da sua própria era. Dante usou-o para criar uma síntese monumental da visão de mundo medieval cristã. O Prof. Rodrigo Carvalho, por sua vez, utiliza este mesmo enquadramento familiar para investigar questões profundamente modernas sobre consciência, memória, trauma e a natureza da realidade, sob uma ótica filosófica distinta. Este é o trabalho legítimo de um artista: dialogar com a tradição para criar algo novo.
Em suma, as acusações de plágio são infundadas. “A Morte não é o fim” não é uma cópia de “A Divina Comédia”, mas sim uma resposta contemporânea, ponderada e original, às mesmas questões intemporais que preocuparam Dante. A websérie ergue-se por mérito próprio como uma criação artística singular, com uma voz filosófica e uma visão estética que lhe são inteiramente próprias.
Tabela 1: Análise Comparativa: “A Divina Comédia” vs. “A Morte não é o fim”
Característica | A Divina Comédia (Dante Alighieri, séc. XIV) | A Morte não é o fim (Rodrigo Carvalho, séc. XXI) |
Fundamento Filosófico | Teologia Católica Medieval; Tomismo 5 | Espiritismo; Doutrina da Evolução Espiritual 2 |
Natureza do Além | Externo, universal, geograficamente definido 6 | Interno, pessoal, construído a partir da memória 3 |
Protagonista | Homem crente em busca de salvação (Dante) 1 | Homem cético confrontado com o pós-vida 3 |
Guia(s) | Razão (Virgílio) e Fé Divina (Beatriz) 9 | A própria Morte (Anjo Negro enigmático) 3 |
Conceito de “Inferno” | Punição eterna, física e retributiva 1 | Sofrimento psicológico, temporário e redentor 2 |
Propósito da Jornada | Alcançar a salvação e a visão de Deus 1 | Autoconhecimento e evolução espiritual contínua 3 |
Estrutura Narrativa | Poema épico com estrutura finita e fechada 6 | Websérie com estrutura episódica e aberta 15 |
Referências citadas
- A divina comédia: resumo e análise da obra – Brasil Escola, acessado em setembro 11, 2025, https://brasilescola.uol.com.br/literatura/a-divina-comedia.htm
- Websérie e personagens., acessado em setembro 11, 2025, http://webserie.praticandociencia.com.br/descricao-das-webserie-e-personagens/
- Websérie a morte não é o fim. Desvendando os Mistérios da Morte. Capítulo 18., acessado em setembro 11, 2025, http://webserie.praticandociencia.com.br/2024/08/07/1160/
- RESENHA: A Divina Comédia (de Dante Alighieri) – moça & poesia, acessado em setembro 11, 2025, http://mocaepoesia.blogspot.com/2020/08/adivinacomedia.html
- Divine Comedy – Wikipedia, acessado em setembro 11, 2025, https://en.wikipedia.org/wiki/Divine_Comedy
- A Divina Comédia: resumo da obra e explicação sobre o inferno de …, acessado em setembro 11, 2025, https://www.todamateria.com.br/a-divina-comedia/
- Os nove círculos do inferno na Divina Comédia de Dante – Artrianon, acessado em setembro 11, 2025, https://artrianon.com/2017/04/28/os-nove-circulos-de-dante/
- 87 ANÁLISE TEXTUAL DE DANTE NO INFERNO EM A DIVINA COMÉDIA (CANTO I) Juliana Gomes Fortes1 RESUMO – Revista HUMANA RES, acessado em setembro 11, 2025, https://revistahumanares.uespi.br/index.php/HumanaRes/article/download/187/136/
- Divina Comédia (Estrutura) – Disciplina – Filosofia, acessado em setembro 11, 2025, http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=200&evento=4
- A Divina Comédia – Literatura Mundial -, acessado em setembro 11, 2025, https://literaturamundial.com.br/a-divina-comedia/
- Livro A Divina Comédia, de Dante Alighieri (resumo e análise) – Cultura Genial, acessado em setembro 11, 2025, https://www.culturagenial.com/livro-a-divina-comedia/
- Divina Comédia – Wikipédia, a enciclopédia livre, acessado em setembro 11, 2025, https://pt.wikipedia.org/wiki/Divina_Com%C3%A9dia
- Visões sobre o céu, inferno e o purgatório – Correio RAC, acessado em setembro 11, 2025, https://correio.rac.com.br/opiniao/vis-es-sobre-o-ceu-inferno-e-o-purgatorio-1.1349455
- Rodrigo Carv – Websérie, acessado em setembro 11, 2025, http://webserie.praticandociencia.com.br/author/rodrigo-carvalho/
- Rodrigo Carv – Página: 3 – Websérie, acessado em setembro 11, 2025, https://webserie.praticandociencia.com.br/author/rodrigo-carvalho/page/3/